Mateus Bertoncini, doutor em Direito pela UFPR, é professor do Programa de Mestrado em Direito do UniCuritiba e procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná. Luiz Eduardo Gunther, doutor em Direito pela UFPR, é professor do Programa de Mestrado em Direito do UniCuritiba e desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região.
A madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 ficará marcada indelevelmente na história do nosso país. Às 3h15, um incêndio atingiu a boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Às 4 horas não havia qualquer pessoa viva dentro do estabelecimento. O saldo foi de 240 mortos e centenas de feridos, alguns dos quais seguem hospitalizados. A grande maioria era formada por jovens, vítimas de uma tragédia que comoveu o Brasil e teve repercussão internacional.
Como amplamente veiculado, houve uma série de atos e fatos que produziram o evento: a casa noturna havia passado por uma reforma, revestindo o teto com uma espuma acústica altamente inflamável e tóxica; os proprietários do estabelecimento tinham o hábito de lotar a casa muito além de sua capacidade – embora o local suportasse 691 pessoas, no dia do evento esse número seria superior a 1 mil frequentadores; o produtor da banda Gurizada Fandangueira resolveu comprar fogos de artifício mais baratos, porém contraindicados para ambientes fechados; o vocalista da banda acendeu um sinalizador durante os primeiros versos do funk Amor de Chocolate, ateando fogo ao forro da casa; por fim, os equipamentos de segurança eram insuficientes e ineficazes, não permitindo que fosse debelado o incêndio, sem falar da ausência das saídas de emergência.
Enquanto a primeira etapa das investigações volta-se à elucidação dos múltiplos homicídios, a segunda objetiva a apuração da prevaricação das autoridades públicas que deveriam ter fiscalizado o local para averiguar a presença ou não das condições adequadas de funcionamento da Boate Kiss.
A par da responsabilidade criminal, nota-se a necessidade também de se averiguar a responsabilidade civil, de cunho patrimonial, das pessoas físicas e jurídicas envolvidas na tragédia, inclusive o Estado. Com efeito, danos materiais e morais afligiram centenas de pessoas e famílias vitimadas pelo marcante episódio, por culpa dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, responsáveis pelo estopim do incêndio, e dos sócios da boate Kiss, que lotaram o estabelecimento muito além de sua capacidade regular, não velando pela segurança do local, expondo a risco a vida e a saúde das pessoas.
A responsabilidade civil provavelmente também alcance o Estado, na sua modalidade culpa do serviço. Ou seja, porque os serviços de fiscalização não funcionaram ou funcionaram mal, não exigindo da empresa as providências necessárias para a segurança dos administrados – consta que o alvará de funcionamento estava vencido e alguns extintores de incêndio não funcionaram –, isso atingirá o Estado, que solidariamente participará junto aos demais responsáveis pelo pagamento das indenizações devidas às vítimas ou às famílias das vítimas, na proporção de suas responsabilidades.
Há também a necessidade de se apurar a responsabilidade disciplinar desses agentes estatais que não realizaram as inspeções e exigências devidas, para a possível demissão dos faltosos, caso seja constatado, por intermédio do devido processo administrativo disciplinar, a ocorrência de infração disciplinar grave.
Se parece certo existir responsabilidade criminal, civil e administrativa, ainda não é possível se dizer que o caso comporte a responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa, uma modalidade especial e independente de responsabilidade.
Parece inaplicável o art. 11, inc. II, da Lei 8.429/1992, que define como ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública, “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”. Embora aparentemente o comportamento omissivo dos agentes de fiscalização se amolde a esse tipo da Lei de Improbidade Administrativa, essa figura exige o dolo para a sua caracterização, não lhe bastando a culpa. Em outras palavras, se houve desídia dos servidores da fiscalização, se houve negligência, esses agentes não responderão com base nessa figura. As hipóteses de “atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário” merecem ser descartadas, porque a situação não envolveu esse tipo de prejuízo.
A modalidade que resta é a do art. 9º da LIA, em especial aquele comportamento definido no inc. I do mencionado artigo: “receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público”.
Ou seja, se os funcionários incumbidos do exercício do poder de polícia do Estado se omitiram dolosamente, mediante o pagamento de propina, e com isso permitiram o funcionamento indevido da Boate Kiss, eles, os sócios da boate e a própria empresa poderão ser alcançados pela Lei 8.429/1992.
Todas essas providências se justificam em nome da memória dos 240 brasileiros brutalmente mortos naquela fatídica madrugada, cuja justiça há de se fazer para que eventos como esse, fruto de uma sociedade de risco, não mais se repitam, em respeito à vida, à dignidade humana, à solidariedade e à fraternidade.
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